Eu sou dois e, ao mesmo tempo, não sou ninguém. Exatamente por isso que eu (não sei qual dos dois que está escrevendo) sou tão louco.
O suposto primeiro “eu”:
Este quer viver na cidade pequena, com o mínimo de luxo possível, se alimentando com qualidade, praticando esportes. Esse Lucas escuta músicas tradicionalistas, MPB e blues, não se importa com o que os outros pensam a respeito de suas roupas velhas e fora de moda. Ele vive feliz, assistindo aos jogos do brasileirão, sabendo as escalações de todos os times, Ele nunca irá ao estádio ver os jogos do seu time, pois é muito perigoso. Os estádios estão cada vez mais violentos, além disso, ele precisa guardar dinheiro para a velhice. A sua saúde e seu futuro o preocupam muito. Não pensa em estudar, uma vez que seu grande herói de adolescência, o Mr. Pi, chegou ao sucesso sem ter diploma. Ele também é muito fã do Pink Floyd (nesse ponto os dois Lucas combinam) e o refrão de Another Brick in the Wall II é bem direto: “Não precisamos de nenhuma educação”. Portando, faculdade para que? Não precisava nem ter feito ensino médio.
Os lugares cheios o incomodam e o olhar crítico de uma pessoa o deixa vermelho.
Ele terá uma velhice saudável ao lado de sua esposa, a única namorada que teve na vida. Eles se conheceram em uma das tardes de verão que Lucas passa com a família no Balneário Bela Vista, em Cachoeira do Sul. Ela não tem nenhum tipo de beleza física, mas a simplicidade e a humildade são o que importa.
Ele gosta de política, a revolução francesa o fascina, acha que tudo está errado, mas seu egoísmo e individualismo não o permitem lutar por nada, só por ele mesmo. Não vale a pena deixar de assistir a estréia do Internacional na Copa Sul-americana, ao vivo na RBSTV, para ir reivindicar na reunião do sindicato dos correios. Passou no concurso logo após seu aniversário de 23 anos, está prestes a se aposentar e nunca vira tamanha mobilização de sua classe na luta por aumento salarial. Ele é totalmente contra a greve, mas não diz isso aos colegas e sempre que eles decidem pela paralisação, ele adere de forma obediente.
Sua rotina é acordar às 6h45, ler os jornais, tomar café com bolo de milho e pão caseiro e ir para o trabalho no carro que comprou no segundo ano de trabalho. Vai para casa almoçar a sobra da janta, assiste ao Globo Esporte espalitando os dentes enquanto a esposa lava a louça. Os dois se perguntam, se lamentando: “Por que nosso filho saiu de casa, se ele tinha tudo aqui, casa, comida e roupa lavada?” Lucas volta ao trabalho às 13h30min, retorna às 18h30min, toma banho, faz uma roda de chimarrão com os amigos de infância, que ainda são seus vizinhos, e janta, pontualmente, às 20h15min. Comer tarde prejudica a digestão.
Nos finais de semana, liga para seu filho, que está em Santa Maria fazendo cursinho para tentar entrar na faculdade de Direito. O pai faz questão de relembrar ao filho de todos os conselhos: “não abra a porta para estranhos”, “não experimente drogas, pois poderá ficar viciado”, “coma frutas”, “não beba”, “não coma fast-food” e o principal; “estude, pois estudo é a única coisa que ninguém tira da gente”. Joga futebol sábado à tarde e, depois, assiste a um jogo da série B do brasileirão observando a esposa preparar a janta especial de sábado.
Lucas era feliz, até pouco tempo, pois nunca esperou muito da vida, mas nos últimos anos anda decepcionado com o aumento da violência, com o fato de seu filho ter ido embora sem nenhuma explicação e, principalmente, porque tem observado que as famílias de hoje em dia não são mais unidas, não comemoram o Natal com toalhas vermelhas nas mesas nem se preocupam em almoçarem juntas no domingo.
Esse primeiro Lucas terá um velório e um caixão de luxo, pois guardou dinheiro a vida toda para isso.