O intenso calor que marcou o verão porto-alegrense nas
últimas semanas de fevereiro nada tinha a ver com o show que ocorreria no
começo de março, no Estádio Beira-Rio. Ingleses, os quatro membros dos Rolling
Stones encarregaram-se de trazer consigo um clima bem mais ameno. O vento da
noite anterior à apresentação já era um sinal de que Keith Richards, Mick
Jagger, Charlie Watts e Ronnie Wood haviam chegado. “Estamos respirando o mesmo
ar que eles”, orgulhavam-se os fãs do grupo no fim da tarde de terça-feira. Para
tornar-se a capital mundial do rock por uma noite, Porto Alegre precisou, literalmente, entrar no clima do país de onde saíram as duas maiores e mais influentes bandas
do gênero: Beatles e Rolling Stones.
Os septuagenários (com exceção de Ron, que tem 68) entraram no palco exatamente às 21h, como
estava prometido no ingresso, adquirido pela maioria das pessoas ainda no ano
passado. Diferente do que ocorreu em maior parte dos shows da América Latina
Olé Tour, que já passou por Chile, Argentina e Uruguai, a banda começou a
apresentação com Jumpin’ Jack Flash (single de 1968). Já nos primeiros acordes,
a sensação de que valeu cada centavo investido toma conta dos fãs que
aguardaram tanto tempo para ver os Rolling Stones em solo gaúcho.
O vocalista Mick Jagger assume o controle do público e toma
conta do palco com a naturalidade adquirida em mais de cinco décadas de
carreira. O front man cantou “I was born in a
crossfire hurricane” (primeira frase de Jumpin’...) mexendo seu
finíssimo e malhado quadril, apontando o dedo indicador para o público e
andando incansavelmente de um lado para o outro, sem parar. Ele agiu exatamente da
mesma forma que os fãs acostumaram-se a ver nas gravações de shows durante 50 anos. Depois de décadas assistindo pelas telas (da minúscula televisão em
preto e branco, passando pelas fitas de vídeo e pelo DVD até chegar ao tablet),
os fãs finalmente tiveram a honra de presenciar tudo.
“It’s only rock’n roll (but I like it)”, canta Mick no
refrão da segunda música do set list, do álbum homônimo de 1974. A chuva, convocada
pelos ingleses para abrilhantar a espetáculo, deu poucas tréguas ao longo da noite. Tumbling
Dice é a solitária representante daquele que talvez seja o
principal disco do grupo, Exile on Main St. (1972). A irregular Out of Control,
a quarta a ser executada, extraída do disco Bridges do Babylon, de 1997, é a
única escolha questionável. É no mínimo estranho os Rolling Stones incluírem
essa música e esquecerem-se de um punhado de gravações brilhantes de sua era de
ouro (de 1965 a 1978). Porém, o escorregão (se pode ser chamado assim) fica
longe de comprometer. O refrão “Now I'm out... Oh out of control... Oh help me
now” chega a empolgar.
O álbum Between The Buttons, de 1967, foi representado por
duas das mais icônicas músicas da banda. A primeira foi Let’s Spend The Night
Together, anunciada por Mick Jagger em bom português: “a próxima música foi
escolhida por vocês” (Foi realizada, pelo site oficial e pelos perfis da banda
nas redes sociais, uma votação entre quatro canções. A vencedora foi Let's Spend...). A outra do disco de 1967
foi Ruby Tuesday, a surpresa da noite. Em todos os outros espetáculos da turnê,
a balada, nessa parte do set list, foi Angie (Goats Head Soup, 1973) ou Wild
Horses (Sticky Fingers, 1971). Daquelas que parecem ter sido feitas para serem tocadas ao vivo, Paint
it black (Aftermath, 1966) foi, talvez, o momento de maior emoção. Compôs, com as duas anteriores, o maior momento do show. Sintonia absoluta de vozes. O entusiasmo era tanto que tomava os ocupantes das derradeiras cadeiras do estádio, passando por quem estava na pista e inundando os músicos de água e de reconhecimento.
Mick Jagger falou em português frases como “Aí, gurizada”, “me disseram
que as mulheres gaúchas são as mais lindas do Brasil”, “Nós vimos o pôr do sol de
mãos dadas”. Mantém, dessa forma, a tradição de artistas internacionais que estiveram no Brasil, com a exceção de Bob Dylan, que nunca faz questão de ser simpático. Quem acompanha a carreira dos Rolling Stones sabe que a segunda metade do espetáculo é totalmente previsível. A acusação de que a banda é, há pelo menos 20 anos, cópia de si mesma, talvez seja embasada nessa parte final. A já antiga versão estendida e arrastada de Midnight Rambler (Let it Bleed, 1969), acompanhada do aumento considerável da chuva (não precisavam exagerar, Stones!), fez com que o público ficasse um pouco desatento, perdesse o ritmo. Poucos conseguiram acompanhar. Ao contrário do que aconteceu em Buenos Aires, quando o público "cantou" até os solos da guitarra de Midnight....
A alongada Miss You (Some Girls, 1978), por sua vez, é entoada como hino por um ensopado e enlouquecido Beira-Rio lotado. Foi um dos principais momentos de interação entre Jagger e o público. Sensível à situação, o vocalista diz, mais uma vez no idioma local: "vocês cantam muito bem". Ovacionados, os Stones emendam Gimme Shelter (Let It Bleed, 1969), o momento em que a backing vocal Sasha Allen torna-se protagonista. Jagger e ela, ambos vestindo preto dos pés à cabeça, dividem os vocais, dançam, sensualizam. Seguem com uma trinca envolvente formada por Start me up (Tattoo You, 1981), Sympathy for the devil (Beggars Banquet, 1968) e Brown Sugar (Sticky Fingers, 1971). O refrão dessa última é outro ponto crucial da noite. Público e banda, incansáveis, cantam juntos, com todo o potencial. Mick Jagger agradece, e os Rolling Stones vão embora do palco.
Como de costume, voltam para o bis. You Can't always Get What you want (Let It Bleed, 1969) e Satisfaction (Out of Our Heads, 1965) encerram aquilo que pode ser chamado, de forma bem clichê, de aula de rock'n roll. You Can't... contou com participação do coral da PUC-RS, que teve o seu talento reconhecido por Jagger: "thank you, guys". A segunda metade foi exatamente como é há muito tempo. Previsível? Sim, totalmente. Ruim? Podemos ter certeza de que ninguém que estava lá diria que foi algo próximo disso. Foi um encontro inesquecível, uma experiência irretocável, que não sairá da memória até o o fim da vida. Para que mudar uma fórmula infalível que já levou milhões de pessoas ao redor do mundo a níveis inimagináveis de emoção e alegria?
Sobreviventes de uma geração em que muitos morreram de overdose, que decepcionou-se por não conseguir que o governo norte-americanos desistisse da guerra do Vietnã ou simplesmente caiu no esquecimento, os Rolling Stones são a personificação do rock'n roll. Sendo indiscutivelmente os principais nomes em atividade no gênero, mesmo com décadas de estrada e com bandas saindo empolgadíssimas das garagens de Londres todos os anos, eles são um tapa na cara do rock bunda mole e engajado da atualidade. Comportados ao extremo e com visual muito ajeitadinho, mas sem conseguir enfileirar nem meia dúzia de discos realmente bons, daqueles que ouvimos inteiros sem pular nenhuma faixa, as bandas do fim do século passado e do começo do atual parecem crianças do jardim de infância diante dos fumantes inveterados Ronnie e Richards, preocupados apenas com a sua música, o nosso querido rock'n roll.
Em shows como esse, cada cinco minutos parecem ser 2 meses, de tão intensos que são vividos. Que saudades dos anos que passamos juntos ontem, Keiht, Mick, Ron e Charlie. Voltem para trazer mais e mais rock'n roll. Porto Alegre e o Brasil estão precisando. Obrigado por terem nos dado um banho de juventude, disposição, lágrimas e chuva.
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