sábado, 4 de abril de 2015

Quatro filmes para amar Jean-Luc Godard

1960 - Em sua estreia, Jean-Luc Godard revolucionou o cinema com seus cortes rápidos, com diálogos inteligentes entre o casal Patricia e Michel, com a representação dos jovens da década de 1960, falando de sexo e problemas financeiros abertamente. Em Acossado, o gênio mostra a dificuldade enfrentada pelas mulheres da época. Patricia (Jean Seberg) engravida acidentalmente, mas precisa fazer um aborto clandestino, ao mesmo tempo que é assediada durante seu trabalho como jornalista. Michel (Jean-Paul Belmondo) é vítima da sociedade capitalista, individualista e consumista. Ele esbanja carisma, mas só sente-se confortável ao ostentar seus carros, suas viagens. Claramente, ele orgulha-se de seus feitos criminosos. A Liberdade sexual da jovem americana que fora estudar na França junta-se com a malandragem de um canastrão, um trambiqueiro que nada faz além de querer satisfazer as necessidades impostas por uma sociedade cruel e inumana. Nesse cenário, surge uma obra-prima.





1961 - Em Uma Mulher é Uma Mulher (Une femme est une femme), Jean-Luc Godard empodera a figura feminina e chama todos os holofotes para Anna Karina, sua atriz-musa. Não pelas questões sexuais, mas pela capacidade intelectual, Angela (Karina) controla seus dois pretendentes (Jean-Paul Belmondo e Jean-Pierre Léaud) e os mantém focados na sua figura. Ela canta, dança, esbanja carisma em uma das maiores atuações femininas que eu já assisti. Godard joga seus personagens para o ar, à própria sorte, em um mundo onde a música liberta e os sonhos são realizáveis. É um filme considerado como inclassificável pela crítica. É uma homenagem aos musicais clássicos, aos romances escritos em um contexto histórico de batalha dos sexos. Na URSS, as mulheres chegaram a serem desafiadas: elas deveriam engravidar para manter a posição de mães e esposas. Caso não obedecessem, seriam demitidas de seus empregos. Godard realiza uma áspera crítica à essa absurda realidade. Ser fêmea e ter um útero era considerado um crime, uma ameaça contra as normas convencionais. Anna Karina encarna essa complexa personagem e enfrenta seus algozes com grande naturalidade, mantendo seus lindos olhos abertos e altivos. Afinal, ela é UMA MULHER! E tem muito ORGULHO disso.





1963 - Godard desfere uma dura crítica ao mundo do cinema em O Desprezo. Brigitte Bardot exala sexualidade como Camille. Ela é a esposa de Jeremy (Jack Palance), um roteirista contratado para realizar uma nova versão de A Odisseia (clássico do poeta Homero). A dissolução do casal é uma bela forma do diretor mostrar a inevitável influência da carreira sobre a vida pessoal. As exigências da produção simplesmente impossibilitam a realização do projeto, fato que muitas vezes assombra cineastas que não gozam de muito prestígio longe de Hollywood. A ideia de que a mulher deslumbrante e com corpo impecável servirá ao homem intelectual e poderoso, formando o casal perfeito, é rechaçada pelo gênio da Nouvelle Vague. Camille passa a desprezar seu marido pela falta de atenção por parte do marido e pela carência de carinhos. Era a mulher assumindo uma posição diferente e tomando decisões que iam na contra-mão das exigências do cinema e da sociedade convencional. Godard sempre lutou incessantemente contra essas normas, o que o coloca em um patamar de superioridade intelectual e ideológica. Abaixo, trechos do filme:




1966 - Em Masculino-Feminino, Godard retrata a "Geração Coca-Cola", pessoas ligadas à política e às reformas sociais da década de 1960, mas de forma superficial, sem um engajamento real e eficaz. Mais preocupadas com a carreira do que com a sociedade, mais interessadas no individual do que no coletivo, as pessoas ingressam em uma vida hedonista, na qual realizam sonhos relativos e não conseguem interferir no mundo que as cerca. Em tom documental, o diretor apresenta uma juventude irresponsável, simpática ao estilo de vida americano, consumista. Abaixo, uma das cenas mais representativas do filme, a entrevista com a 'Miss 19 anos', a típica francesa da década de 1960


terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Oscar 2015

Boyhood, de Linklater

O histórico longa de Richard Linklater acompanha a infância e a adolescência de Mason Evans Jr (Ellar Coltrane), sua relação com os pais separados (Patricia Arquete, como Olivia e Ethan Hawke, como Mason) e sua irmã (Lorelei Linklater). Também mostra os tradicionais problemas enfrentados nessa fase da vida. A trilha sonora com Coldplay, Lady Gaga e Blink-182 e o encontro de fãs de Harry Potter contribuem para a identificação da geração nascida entre a segunda metade dos anos 1980 e a primeira dos anos 1990.

O pai tenta se aproximar de diversas formas, mas claramente não tem muito talento para lidar com crianças. A mãe carrega a família, educa os filhos com a ajuda de amigas, mas, ao mesmo tempo, prejudica a infância dos filhos casando-se com um professor alcoólatra, que a agride fisicamente.

A narrativa aproxima o espectador dos personagens, apontando suas inseguranças, principalmente do garoto e da mãe, cuja fala final resume a obra. Ela representa a mulher contemporânea, que já conquistou o direito de trabalhar fora, estudar, participar da sociedade de forma relativamente igualitária (ainda não totalmente justa), mas ainda tem sobre suas costas praticamente toda a responsabilidade na criação dos filhos. Ela educa e cuida. O pai leva para jogar o boliche e para pescar.Ela assume a posição da chata, que exige e corta os prazeres. Ele é  o parceiro.

Enquanto o pai curtia a vida e conhecia diferentes mulheres, Olivia era mãe, estudante, profissional. Não existia como ela mesma, mas sim em relação aos outros, vivia em função dos filhos. Não vemos ela tendo momentos só dela. Olivia está presa dentro do ciclo trabalho/estudo/família.

O pai, por sua vez, é livre, passa a imagem de estar sempre de bem com a vida, mora com um amigo músico. O momento em que  Junior é presenteado pelo pai com uma seleção das carreiras solo dos quatro Beatles é brilhante, marca o início da sintonia entre os dois.

Proposital ou acidentalmente, a reflexão final de Boyhood acaba ficando com a mãe, não com os filhos. Ela torna-se figura central a partir do momento em que assume a responsabilidade por todos que estão à sua volta. Esquece-se dela própria. Espero que a Academia lembre dela como atriz coadjuvante do ano.

Jogo da Imitação, de Morten Tyldum

Pouco festejado pela crítica, conta a história real de Alan Turing (Benedict Cumberbatch), o matemático responsável pela descoberta do código que contribuiu para o fim da II Guerra Mundial.A magnífica atuação de Benedict Cumberbatch aliada a essa história arrebatadora já bastaria para termos um excelente filme. Mas o diretor vai além.

Turing é um Sheldon Cooper (The Big Bang Theory) da vida real. Obstinado pela resolução do problema, ele ignora qualquer outra possibilidade de felicidade. Com a fiel colaboração de Joan (Keira Knightley), ele vive em função do trabalho, cria uma máquina para vencer a guerra a favor da Inglaterra.

A narrativa acerta por mostrar simultaneamente as duas lutas de Turing: a particular e a profissional, contra os nazistas. Ele desaba diante do próprio sucesso profissional, pois a vitória escancara a falência da sociedade burguesa da época. Um herói morto pelo preconceito.

Enquanto Selma exagera no caráter documental e A Teoria de Tudo detém-se somente no lado pessoal de Hawking, O Jogo da Imitação acerta em cheio no equilíbrio dos fatos. Grande filme. Emocionante.

Birdman, de Alejandro González Iñárritu

Birdman é, assim como O Lobo de Wall Street no Oscar anterior, um típico longa contemporâneo: contém humor, discussões ríspidas, sexo, cenas ágeis, trilha sonora com músicas conhecidas. Apesar disso, Iñárritu manteve o caráter experimental que marca sua carreira. Michael Keaton interpreta a sim próprio como o ator (Riggan Thomson) que quer provar sua capacidade para o público e para si mesmo. Ele é excêntrico, vive em busca de um injustificável sucesso.

Segundo o cineasta francês Jean-Luc Godard, cinema não é técnica, nem arte, mas um mistério. E é nesse ponto que Birdman transforma-se em uma obra exuberante. As perguntas ficam no ar, as razões pelas quais os personagens tomam determinadas atitudes são incompreensíveis. Iñarritu filma a imaginação do seu herói, confronta-o com seus maiores pesadelos. A narrativa não nos permite ter certezas.

Uma fábula sobre a eterna luta que o ser humano estabelece contra ele mesmo, uma batalha sem sentido, que só o leva à ilusão, ao fim, à escuridão. O truque de chamar um artista esquecido para esse tipo de papel já foi utilizado por Billy Wilder em Crepúsculo dos Deuses (Sunset Boulevard, 1950). O personagem de Keaton também lembra o palhaço falido genialmente interpretado por Chaplin em Monsieur Verdoux (1948). A disputa entre a vida do artista e a sua própria arte também foi encarada pela personagem de Greta Garbo, em O Grande Hotel (1932). "I just wnat to be alone", dizia ela. Keaton nem sabia o que queria. Parecia um gato louco correndo atrás do próprio rabo.

Viajamos com Edward Norton, Emma Stone e Naomi Watts, o brilhante elenco do filme do ano.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O autor que amava o amor

Em O Homem que Amava as Mulheres (L'homme qui aimait les femmes, 1977), François Truffaut justifica, mais uma vez, o seu alcunha de “cineasta do amor” (este blog já tratou do tema no lendário post sobre o filme Jules e Jim). Através do personagem (Charles Denner), um conquistador compulsivo, o diretor mostra a possibilidade de um homem se apaixonar por diversas mulheres, cada uma por um diferente motivo.

O protagonista descreve honestamente suas conquistadas, que não têm uma beleza nos padrões hollywoodianos, mas sim admiráveis peculiaridades, como irresistíveis "balançares de vestido"  e a forma firme de caminhar. O herói também “não é um Dom Juan”, mas o ar “circunspecto” dele garante seu charme.

Naturalmente, o herói da película trata muitas das mulheres como um simples objeto de prazer, o que não o torna um cafajeste ou um oportunista. Ele também se comporta como tal e é, quase sempre, sincero com elas - que simplesmente não o resistem.

Sem cair na tentação de julgar o protagonista, o que provavelmente aconteceria com um diretor comum, um indecifrável Truffaut retrata a vida desse homem que busca a felicidade da sua forma, sem medo das opiniões alheias. Um indivíduo pacato exteriormente (seu visual é completamente casual), mas intenso no seu íntimo.

Sob um único ponto de vista, com exceção do texto final, a película tem um tom autobiográfico, contada por um narrador cujas duas posições se fundem; o escritor do livro e o narrador do filme em si. As duas obras começam separadas e, com o decorrer dos fatos, assumem um único sentido.

Truffaut sempre buscou entender o amor, desde o tempo em que anarquizava ao lado dos colegas de Nouvelle Vague. Aqui, ele o faz, novamente, com criatividade e seu típico frescor. A aparente confusão fará todo o sentido para o espectador, ao final do longa. Ou ao final do livro?

No fim das contas, o amor retorna às cinzas, e os indivíduos são jogados à própria sorte, lambendo a poeira do chão antes habitado pelos espíritos livres que acreditavam em um sentimento que, de tão puro, é simplesmente inalcançável para a raça humana. Ilusão que seguirá deixando mortos na telona, nos palcos de teatro, no morro, no palácio, na televisão e no meio das ruas.