domingo, 19 de junho de 2016

Rolling Stones fazem chover em Porto Alegre

O intenso calor que marcou o verão porto-alegrense nas últimas semanas de fevereiro nada tinha a ver com o show que ocorreria no começo de março, no Estádio Beira-Rio. Ingleses, os quatro membros dos Rolling Stones encarregaram-se de trazer consigo um clima bem mais ameno. O vento da noite anterior à apresentação já era um sinal de que Keith Richards, Mick Jagger, Charlie Watts e Ronnie Wood haviam chegado. “Estamos respirando o mesmo ar que eles”, orgulhavam-se os fãs do grupo no fim da tarde de terça-feira. Para tornar-se a capital mundial do rock por uma noite, Porto Alegre precisou, literalmente, entrar no clima do país de onde saíram as duas maiores e mais influentes bandas do gênero: Beatles e Rolling Stones.

Os septuagenários (com exceção de Ron, que tem 68) entraram no palco exatamente às 21h, como estava prometido no ingresso, adquirido pela maioria das pessoas ainda no ano passado. Diferente do que ocorreu em maior parte dos shows da América Latina Olé Tour, que já passou por Chile, Argentina e Uruguai, a banda começou a apresentação com Jumpin’ Jack Flash (single de 1968). Já nos primeiros acordes, a sensação de que valeu cada centavo investido toma conta dos fãs que aguardaram tanto tempo para ver os Rolling Stones em solo gaúcho.

O vocalista Mick Jagger assume o controle do público e toma conta do palco com a naturalidade adquirida em mais de cinco décadas de carreira. O front man cantou “I was born in a crossfire hurricane” (primeira frase de Jumpin’...) mexendo seu finíssimo e malhado quadril, apontando o dedo indicador para o público e andando incansavelmente de um lado para o outro, sem parar. Ele agiu exatamente da mesma forma que os fãs acostumaram-se a ver nas gravações de shows durante 50 anos. Depois de décadas assistindo pelas telas (da minúscula televisão em preto e branco, passando pelas fitas de vídeo e pelo DVD até chegar ao tablet), os fãs finalmente tiveram a honra de presenciar tudo.

“It’s only rock’n roll (but I like it)”, canta Mick no refrão da segunda música do set list, do álbum homônimo de 1974. A chuva, convocada pelos ingleses para abrilhantar a espetáculo, deu poucas tréguas ao longo da  noite. Tumbling Dice é a solitária representante daquele que talvez seja o principal disco do grupo, Exile on Main St. (1972). A irregular Out of Control, a quarta a ser executada, extraída do disco Bridges do Babylon, de 1997, é a única escolha questionável. É no mínimo estranho os Rolling Stones incluírem essa música e esquecerem-se de um punhado de gravações brilhantes de sua era de ouro (de 1965 a 1978). Porém, o escorregão (se pode ser chamado assim) fica longe de comprometer. O refrão “Now I'm out... Oh out of control... Oh help me now” chega a empolgar.

O álbum Between The Buttons, de 1967, foi representado por duas das mais icônicas músicas da banda. A primeira foi Let’s Spend The Night Together, anunciada por Mick Jagger em bom português: “a próxima música foi escolhida por vocês” (Foi realizada, pelo site oficial e pelos perfis da banda nas redes sociais, uma votação entre quatro canções. A vencedora foi Let's Spend...). A outra do disco de 1967 foi Ruby Tuesday, a surpresa da noite. Em todos os outros espetáculos da turnê, a balada, nessa parte do set list, foi Angie (Goats Head Soup, 1973) ou Wild Horses (Sticky Fingers, 1971). Daquelas que parecem ter sido feitas para serem tocadas ao vivo, Paint it black (Aftermath, 1966) foi, talvez, o momento de maior emoção. Compôs, com as duas anteriores, o maior momento do show. Sintonia absoluta de vozes. O entusiasmo era tanto que tomava os ocupantes das derradeiras cadeiras do estádio, passando por quem estava na pista e inundando os músicos de água e de reconhecimento.

Depois de uma acelerada Honk Tonk Woman (Single de 1969), a primeira e melhor parte do show é encerrada com Keith Richards nos vocais. Durante toda a turnê, o mítico músico cantou duas dentre cinco opções. Em Porto Alegre, ele preferiu a balada You Got the Silver (Let It Bleed, 1969), quando ele e Ronnie protagonizam uma bela troca de olhares, cada um empunhando um violão, e Before They Make Me Run. Richards, totalmente à vontade no palco, estabelece uma comunicação com o público em que o fio condutor é a música, aliada a postura despojada e absurdamente simpática do guitarrista e vocalista. Impossível conter as lágrimas diante de uma figura sem a qual o rock'n roll não seria como o conhecemos nos dias de hoje. Jagger, mesmo com toda a sua presença de palco e talento performático, jamais alcança uma relação de tanta intimidade com o público.

Mick Jagger falou em português frases como “Aí, gurizada”, “me disseram que as mulheres gaúchas são as mais lindas do Brasil”, “Nós vimos o pôr do sol de mãos dadas”. Mantém, dessa forma, a tradição de artistas internacionais que estiveram no Brasil, com a exceção de Bob Dylan, que nunca faz questão de ser simpático. Quem acompanha a carreira dos Rolling Stones sabe que a segunda metade do espetáculo é totalmente previsível. A acusação de que a banda é, há pelo menos 20 anos, cópia de si mesma, talvez seja embasada nessa parte final. A já antiga versão estendida e arrastada de Midnight Rambler (Let it Bleed, 1969), acompanhada do aumento considerável da chuva (não precisavam exagerar, Stones!), fez com que o público ficasse um pouco desatento, perdesse o ritmo. Poucos conseguiram acompanhar. Ao contrário do que aconteceu em Buenos Aires, quando o público "cantou" até os solos da guitarra de Midnight....

A alongada Miss You (Some Girls, 1978), por sua vez, é entoada como hino por um ensopado e enlouquecido Beira-Rio lotado. Foi um dos principais momentos de interação entre Jagger e o público. Sensível à situação, o vocalista diz, mais uma vez no idioma local: "vocês cantam muito bem". Ovacionados, os Stones emendam Gimme Shelter (Let It Bleed, 1969), o momento em que a backing vocal Sasha Allen torna-se protagonista. Jagger e ela, ambos vestindo preto dos pés à cabeça, dividem os vocais, dançam, sensualizam. Seguem com uma trinca envolvente formada por Start me up (Tattoo You, 1981), Sympathy for the devil (Beggars Banquet, 1968) e Brown Sugar (Sticky Fingers, 1971). O refrão dessa última é outro ponto crucial da noite. Público e banda, incansáveis, cantam juntos, com todo o potencial. Mick Jagger agradece, e os Rolling Stones vão embora do palco.

Como de costume, voltam para o bis. You Can't always Get What you want (Let It Bleed, 1969) e Satisfaction (Out of Our Heads, 1965) encerram aquilo que pode ser chamado, de forma bem clichê, de aula de rock'n roll. You Can't... contou com participação do coral da PUC-RS, que teve o seu talento reconhecido por Jagger: "thank you, guys". A segunda metade foi exatamente como é há muito tempo. Previsível? Sim, totalmente. Ruim? Podemos ter certeza de que ninguém que estava lá diria que foi algo próximo disso. Foi um encontro inesquecível, uma experiência irretocável, que não sairá da memória até o o fim da vida. Para que mudar uma fórmula infalível que já levou milhões de pessoas ao redor do mundo a níveis inimagináveis de emoção e alegria?


Sobreviventes de uma geração em que muitos morreram de overdose, que decepcionou-se por não conseguir que o governo norte-americanos desistisse da guerra do Vietnã ou simplesmente caiu no esquecimento, os Rolling Stones são a personificação do rock'n roll. Sendo indiscutivelmente os principais nomes em atividade no gênero, mesmo com décadas de estrada e com bandas saindo empolgadíssimas das garagens de Londres todos os anos, eles são um tapa na cara do rock bunda mole e engajado da atualidade. Comportados ao extremo e com visual muito ajeitadinho, mas sem conseguir enfileirar nem meia dúzia de discos realmente bons, daqueles que ouvimos inteiros sem pular nenhuma faixa, as bandas do fim do século passado e do começo do atual parecem crianças do jardim de infância diante dos fumantes inveterados Ronnie e Richards, preocupados apenas com a sua música, o nosso querido rock'n roll.

Em shows como esse, cada cinco minutos parecem ser 2 meses, de tão intensos que são vividos. Que saudades dos anos que passamos juntos ontem, Keiht, Mick, Ron e Charlie. Voltem para trazer mais e mais rock'n roll. Porto Alegre e o Brasil estão precisando. Obrigado por terem nos dado um banho de juventude, disposição, lágrimas e chuva.

sábado, 27 de fevereiro de 2016

O Regresso

A fotografia totalmente natural (não há iluminação artificial) e os desafios que Iñarritu impõe a si mesmo na direção, mostrando ser, de fato, um dos maiores artistas do cinema contemporâneo, são, ao lado de DiCaprio, os méritos do filme, que é longo, mas não cansa em nenhum momento, pois a cada plano, a cada cena, somos apresentados a uma nova dificuldade pela qual Hugh Glass (DiCaprio) passará. Talvez seja a única obra deste Oscar que realmente deixará um legado para o cinema, assim como Birdman no ano passado.O problema é que falta uma história mais criativa, menos óbvia.
O diretor expõe as questões dos índios, mas jamais aprofunda de forma que possamos considerar que o filme seja sobre isso. Se essa era a intenção, Iñarritu falhou. Mas não parece que seja, dada a preferência que a câmera dá para DiCaprio, quase sempre filmando os outros personagens em segundo plano. Observe que, quando o protagonista não está em cena, a câmera não faz diferenciação entre homens brancos e índios. O filme é, portanto, sobre a luta de Glass por sobrevivência e por vingança.

Tom Hardy consegue transmitir o mau caratismo do personagem através de gestos e expressões (sempre muito bem focadas pelo diretor), sendo um verdadeiro vilão, não exatamente por ser uma pessoa ruim (acertadamente, o filme não faz juízo de valor), mas simplesmente por ser o inimigo do protagonista. É um filme ousado, que deixa o espectador curioso sobre qual será o próximo projeto de Iñarritu, mas certamente falta umas história mais robusta para ser considerado o filme do ano.