quinta-feira, 22 de março de 2018

Todos com Lula

Moro foi escalado para tirar Lula da disputa eleitoral assim como aquele volante brucutu que entra em campo com único objetivo de bater no craque do time adversário. O volante brucutu é expulso, mas consegue lesionar o craque adversário. Lula é o craque. O único craque do momento. Moro é esse volante, um qualquer, insignificante, que vai sumir em breve sem deixar saudade em ninguém.
Ambos sairão do jogo, mas o juizinho amigo do Aécio é só mais uma peça que será descartada após colaborar com o objetivo maior, o fim da política e da atividade econômica brasileira. Quem ganha com isso? O administrador, aquele que é "um gestor, não um político", um rico qualquer que não virá do meio político, mas da classe empresarial, e vencerá a eleição presidencial de 2018. Esse é o plano deles: a demonização dos políticos e da política em geral, iniciada em 2013 com as manifestações "contra tudo o que está aí" da galera dos 20 centavos e finalizada pela Farsa-Jato.
O Brasil estará totalmente nas mãos dos empresários mais poderosos, aqueles que usaram Eduardo Cunha (outro volante brucutu) para iniciar o processo da derrubada de Dilma e depois abandonaram o peemedebista à própria sorte. O engano de que Cunha era o inimigo, muito repetido pela esquerda, não pode ocorrer novamente com Moro. Moro é só mais um fantoche nas mãos dos poderosos e dos EUA. Quando ele bailar e levar Lula consigo, alguém aparecerá para substituí-lo e dar sequência ao serviço sujo, que estará praticamente pronto. Lula não tem substituto, e eles sabem disso.
A luta é pela sobrevida da maior liderança popular, Lula, o único capaz de derrotar a direita no ano que vem. Não adianta combater individualmente este ou aquele fantoche, pois esses são utilizados​ hoje e descartados amanhã. O foco deve estar em não perder o nosso único craque.

quarta-feira, 14 de junho de 2017

Dói

Quem foi que disse que tristeza não dói?
Destrói aos poucos
Dá dó
de quem acha que tristeza não dói

Aliás, dá inveja
Feliz de quem nunca sentiu
Dizem que tamanha dor pode matar.
Aqui, dói

Na medida que a noite vai passando,
o suor desce da testa e cai,
me impedindo de dormir.
A cada minuto sem sono, dói

A fumaça não salva,
o álcool não alivia,
Diante de tanta tristeza,
até o pulmão dói

Até respirar dói

domingo, 19 de junho de 2016

Rolling Stones fazem chover em Porto Alegre

O intenso calor que marcou o verão porto-alegrense nas últimas semanas de fevereiro nada tinha a ver com o show que ocorreria no começo de março, no Estádio Beira-Rio. Ingleses, os quatro membros dos Rolling Stones encarregaram-se de trazer consigo um clima bem mais ameno. O vento da noite anterior à apresentação já era um sinal de que Keith Richards, Mick Jagger, Charlie Watts e Ronnie Wood haviam chegado. “Estamos respirando o mesmo ar que eles”, orgulhavam-se os fãs do grupo no fim da tarde de terça-feira. Para tornar-se a capital mundial do rock por uma noite, Porto Alegre precisou, literalmente, entrar no clima do país de onde saíram as duas maiores e mais influentes bandas do gênero: Beatles e Rolling Stones.

Os septuagenários (com exceção de Ron, que tem 68) entraram no palco exatamente às 21h, como estava prometido no ingresso, adquirido pela maioria das pessoas ainda no ano passado. Diferente do que ocorreu em maior parte dos shows da América Latina Olé Tour, que já passou por Chile, Argentina e Uruguai, a banda começou a apresentação com Jumpin’ Jack Flash (single de 1968). Já nos primeiros acordes, a sensação de que valeu cada centavo investido toma conta dos fãs que aguardaram tanto tempo para ver os Rolling Stones em solo gaúcho.

O vocalista Mick Jagger assume o controle do público e toma conta do palco com a naturalidade adquirida em mais de cinco décadas de carreira. O front man cantou “I was born in a crossfire hurricane” (primeira frase de Jumpin’...) mexendo seu finíssimo e malhado quadril, apontando o dedo indicador para o público e andando incansavelmente de um lado para o outro, sem parar. Ele agiu exatamente da mesma forma que os fãs acostumaram-se a ver nas gravações de shows durante 50 anos. Depois de décadas assistindo pelas telas (da minúscula televisão em preto e branco, passando pelas fitas de vídeo e pelo DVD até chegar ao tablet), os fãs finalmente tiveram a honra de presenciar tudo.

“It’s only rock’n roll (but I like it)”, canta Mick no refrão da segunda música do set list, do álbum homônimo de 1974. A chuva, convocada pelos ingleses para abrilhantar a espetáculo, deu poucas tréguas ao longo da  noite. Tumbling Dice é a solitária representante daquele que talvez seja o principal disco do grupo, Exile on Main St. (1972). A irregular Out of Control, a quarta a ser executada, extraída do disco Bridges do Babylon, de 1997, é a única escolha questionável. É no mínimo estranho os Rolling Stones incluírem essa música e esquecerem-se de um punhado de gravações brilhantes de sua era de ouro (de 1965 a 1978). Porém, o escorregão (se pode ser chamado assim) fica longe de comprometer. O refrão “Now I'm out... Oh out of control... Oh help me now” chega a empolgar.

O álbum Between The Buttons, de 1967, foi representado por duas das mais icônicas músicas da banda. A primeira foi Let’s Spend The Night Together, anunciada por Mick Jagger em bom português: “a próxima música foi escolhida por vocês” (Foi realizada, pelo site oficial e pelos perfis da banda nas redes sociais, uma votação entre quatro canções. A vencedora foi Let's Spend...). A outra do disco de 1967 foi Ruby Tuesday, a surpresa da noite. Em todos os outros espetáculos da turnê, a balada, nessa parte do set list, foi Angie (Goats Head Soup, 1973) ou Wild Horses (Sticky Fingers, 1971). Daquelas que parecem ter sido feitas para serem tocadas ao vivo, Paint it black (Aftermath, 1966) foi, talvez, o momento de maior emoção. Compôs, com as duas anteriores, o maior momento do show. Sintonia absoluta de vozes. O entusiasmo era tanto que tomava os ocupantes das derradeiras cadeiras do estádio, passando por quem estava na pista e inundando os músicos de água e de reconhecimento.

Depois de uma acelerada Honk Tonk Woman (Single de 1969), a primeira e melhor parte do show é encerrada com Keith Richards nos vocais. Durante toda a turnê, o mítico músico cantou duas dentre cinco opções. Em Porto Alegre, ele preferiu a balada You Got the Silver (Let It Bleed, 1969), quando ele e Ronnie protagonizam uma bela troca de olhares, cada um empunhando um violão, e Before They Make Me Run. Richards, totalmente à vontade no palco, estabelece uma comunicação com o público em que o fio condutor é a música, aliada a postura despojada e absurdamente simpática do guitarrista e vocalista. Impossível conter as lágrimas diante de uma figura sem a qual o rock'n roll não seria como o conhecemos nos dias de hoje. Jagger, mesmo com toda a sua presença de palco e talento performático, jamais alcança uma relação de tanta intimidade com o público.

Mick Jagger falou em português frases como “Aí, gurizada”, “me disseram que as mulheres gaúchas são as mais lindas do Brasil”, “Nós vimos o pôr do sol de mãos dadas”. Mantém, dessa forma, a tradição de artistas internacionais que estiveram no Brasil, com a exceção de Bob Dylan, que nunca faz questão de ser simpático. Quem acompanha a carreira dos Rolling Stones sabe que a segunda metade do espetáculo é totalmente previsível. A acusação de que a banda é, há pelo menos 20 anos, cópia de si mesma, talvez seja embasada nessa parte final. A já antiga versão estendida e arrastada de Midnight Rambler (Let it Bleed, 1969), acompanhada do aumento considerável da chuva (não precisavam exagerar, Stones!), fez com que o público ficasse um pouco desatento, perdesse o ritmo. Poucos conseguiram acompanhar. Ao contrário do que aconteceu em Buenos Aires, quando o público "cantou" até os solos da guitarra de Midnight....

A alongada Miss You (Some Girls, 1978), por sua vez, é entoada como hino por um ensopado e enlouquecido Beira-Rio lotado. Foi um dos principais momentos de interação entre Jagger e o público. Sensível à situação, o vocalista diz, mais uma vez no idioma local: "vocês cantam muito bem". Ovacionados, os Stones emendam Gimme Shelter (Let It Bleed, 1969), o momento em que a backing vocal Sasha Allen torna-se protagonista. Jagger e ela, ambos vestindo preto dos pés à cabeça, dividem os vocais, dançam, sensualizam. Seguem com uma trinca envolvente formada por Start me up (Tattoo You, 1981), Sympathy for the devil (Beggars Banquet, 1968) e Brown Sugar (Sticky Fingers, 1971). O refrão dessa última é outro ponto crucial da noite. Público e banda, incansáveis, cantam juntos, com todo o potencial. Mick Jagger agradece, e os Rolling Stones vão embora do palco.

Como de costume, voltam para o bis. You Can't always Get What you want (Let It Bleed, 1969) e Satisfaction (Out of Our Heads, 1965) encerram aquilo que pode ser chamado, de forma bem clichê, de aula de rock'n roll. You Can't... contou com participação do coral da PUC-RS, que teve o seu talento reconhecido por Jagger: "thank you, guys". A segunda metade foi exatamente como é há muito tempo. Previsível? Sim, totalmente. Ruim? Podemos ter certeza de que ninguém que estava lá diria que foi algo próximo disso. Foi um encontro inesquecível, uma experiência irretocável, que não sairá da memória até o o fim da vida. Para que mudar uma fórmula infalível que já levou milhões de pessoas ao redor do mundo a níveis inimagináveis de emoção e alegria?


Sobreviventes de uma geração em que muitos morreram de overdose, que decepcionou-se por não conseguir que o governo norte-americanos desistisse da guerra do Vietnã ou simplesmente caiu no esquecimento, os Rolling Stones são a personificação do rock'n roll. Sendo indiscutivelmente os principais nomes em atividade no gênero, mesmo com décadas de estrada e com bandas saindo empolgadíssimas das garagens de Londres todos os anos, eles são um tapa na cara do rock bunda mole e engajado da atualidade. Comportados ao extremo e com visual muito ajeitadinho, mas sem conseguir enfileirar nem meia dúzia de discos realmente bons, daqueles que ouvimos inteiros sem pular nenhuma faixa, as bandas do fim do século passado e do começo do atual parecem crianças do jardim de infância diante dos fumantes inveterados Ronnie e Richards, preocupados apenas com a sua música, o nosso querido rock'n roll.

Em shows como esse, cada cinco minutos parecem ser 2 meses, de tão intensos que são vividos. Que saudades dos anos que passamos juntos ontem, Keiht, Mick, Ron e Charlie. Voltem para trazer mais e mais rock'n roll. Porto Alegre e o Brasil estão precisando. Obrigado por terem nos dado um banho de juventude, disposição, lágrimas e chuva.

sábado, 27 de fevereiro de 2016

O Regresso

A fotografia totalmente natural (não há iluminação artificial) e os desafios que Iñarritu impõe a si mesmo na direção, mostrando ser, de fato, um dos maiores artistas do cinema contemporâneo, são, ao lado de DiCaprio, os méritos do filme, que é longo, mas não cansa em nenhum momento, pois a cada plano, a cada cena, somos apresentados a uma nova dificuldade pela qual Hugh Glass (DiCaprio) passará. Talvez seja a única obra deste Oscar que realmente deixará um legado para o cinema, assim como Birdman no ano passado.O problema é que falta uma história mais criativa, menos óbvia.
O diretor expõe as questões dos índios, mas jamais aprofunda de forma que possamos considerar que o filme seja sobre isso. Se essa era a intenção, Iñarritu falhou. Mas não parece que seja, dada a preferência que a câmera dá para DiCaprio, quase sempre filmando os outros personagens em segundo plano. Observe que, quando o protagonista não está em cena, a câmera não faz diferenciação entre homens brancos e índios. O filme é, portanto, sobre a luta de Glass por sobrevivência e por vingança.

Tom Hardy consegue transmitir o mau caratismo do personagem através de gestos e expressões (sempre muito bem focadas pelo diretor), sendo um verdadeiro vilão, não exatamente por ser uma pessoa ruim (acertadamente, o filme não faz juízo de valor), mas simplesmente por ser o inimigo do protagonista. É um filme ousado, que deixa o espectador curioso sobre qual será o próximo projeto de Iñarritu, mas certamente falta umas história mais robusta para ser considerado o filme do ano.



sábado, 4 de abril de 2015

Quatro filmes para amar Jean-Luc Godard

1960 - Em sua estreia, Jean-Luc Godard revolucionou o cinema com seus cortes rápidos, com diálogos inteligentes entre o casal Patricia e Michel, com a representação dos jovens da década de 1960, falando de sexo e problemas financeiros abertamente. Em Acossado, o gênio mostra a dificuldade enfrentada pelas mulheres da época. Patricia (Jean Seberg) engravida acidentalmente, mas precisa fazer um aborto clandestino, ao mesmo tempo que é assediada durante seu trabalho como jornalista. Michel (Jean-Paul Belmondo) é vítima da sociedade capitalista, individualista e consumista. Ele esbanja carisma, mas só sente-se confortável ao ostentar seus carros, suas viagens. Claramente, ele orgulha-se de seus feitos criminosos. A Liberdade sexual da jovem americana que fora estudar na França junta-se com a malandragem de um canastrão, um trambiqueiro que nada faz além de querer satisfazer as necessidades impostas por uma sociedade cruel e inumana. Nesse cenário, surge uma obra-prima.





1961 - Em Uma Mulher é Uma Mulher (Une femme est une femme), Jean-Luc Godard empodera a figura feminina e chama todos os holofotes para Anna Karina, sua atriz-musa. Não pelas questões sexuais, mas pela capacidade intelectual, Angela (Karina) controla seus dois pretendentes (Jean-Paul Belmondo e Jean-Pierre Léaud) e os mantém focados na sua figura. Ela canta, dança, esbanja carisma em uma das maiores atuações femininas que eu já assisti. Godard joga seus personagens para o ar, à própria sorte, em um mundo onde a música liberta e os sonhos são realizáveis. É um filme considerado como inclassificável pela crítica. É uma homenagem aos musicais clássicos, aos romances escritos em um contexto histórico de batalha dos sexos. Na URSS, as mulheres chegaram a serem desafiadas: elas deveriam engravidar para manter a posição de mães e esposas. Caso não obedecessem, seriam demitidas de seus empregos. Godard realiza uma áspera crítica à essa absurda realidade. Ser fêmea e ter um útero era considerado um crime, uma ameaça contra as normas convencionais. Anna Karina encarna essa complexa personagem e enfrenta seus algozes com grande naturalidade, mantendo seus lindos olhos abertos e altivos. Afinal, ela é UMA MULHER! E tem muito ORGULHO disso.





1963 - Godard desfere uma dura crítica ao mundo do cinema em O Desprezo. Brigitte Bardot exala sexualidade como Camille. Ela é a esposa de Jeremy (Jack Palance), um roteirista contratado para realizar uma nova versão de A Odisseia (clássico do poeta Homero). A dissolução do casal é uma bela forma do diretor mostrar a inevitável influência da carreira sobre a vida pessoal. As exigências da produção simplesmente impossibilitam a realização do projeto, fato que muitas vezes assombra cineastas que não gozam de muito prestígio longe de Hollywood. A ideia de que a mulher deslumbrante e com corpo impecável servirá ao homem intelectual e poderoso, formando o casal perfeito, é rechaçada pelo gênio da Nouvelle Vague. Camille passa a desprezar seu marido pela falta de atenção por parte do marido e pela carência de carinhos. Era a mulher assumindo uma posição diferente e tomando decisões que iam na contra-mão das exigências do cinema e da sociedade convencional. Godard sempre lutou incessantemente contra essas normas, o que o coloca em um patamar de superioridade intelectual e ideológica. Abaixo, trechos do filme:




1966 - Em Masculino-Feminino, Godard retrata a "Geração Coca-Cola", pessoas ligadas à política e às reformas sociais da década de 1960, mas de forma superficial, sem um engajamento real e eficaz. Mais preocupadas com a carreira do que com a sociedade, mais interessadas no individual do que no coletivo, as pessoas ingressam em uma vida hedonista, na qual realizam sonhos relativos e não conseguem interferir no mundo que as cerca. Em tom documental, o diretor apresenta uma juventude irresponsável, simpática ao estilo de vida americano, consumista. Abaixo, uma das cenas mais representativas do filme, a entrevista com a 'Miss 19 anos', a típica francesa da década de 1960


terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Oscar 2015

Boyhood, de Linklater

O histórico longa de Richard Linklater acompanha a infância e a adolescência de Mason Evans Jr (Ellar Coltrane), sua relação com os pais separados (Patricia Arquete, como Olivia e Ethan Hawke, como Mason) e sua irmã (Lorelei Linklater). Também mostra os tradicionais problemas enfrentados nessa fase da vida. A trilha sonora com Coldplay, Lady Gaga e Blink-182 e o encontro de fãs de Harry Potter contribuem para a identificação da geração nascida entre a segunda metade dos anos 1980 e a primeira dos anos 1990.

O pai tenta se aproximar de diversas formas, mas claramente não tem muito talento para lidar com crianças. A mãe carrega a família, educa os filhos com a ajuda de amigas, mas, ao mesmo tempo, prejudica a infância dos filhos casando-se com um professor alcoólatra, que a agride fisicamente.

A narrativa aproxima o espectador dos personagens, apontando suas inseguranças, principalmente do garoto e da mãe, cuja fala final resume a obra. Ela representa a mulher contemporânea, que já conquistou o direito de trabalhar fora, estudar, participar da sociedade de forma relativamente igualitária (ainda não totalmente justa), mas ainda tem sobre suas costas praticamente toda a responsabilidade na criação dos filhos. Ela educa e cuida. O pai leva para jogar o boliche e para pescar.Ela assume a posição da chata, que exige e corta os prazeres. Ele é  o parceiro.

Enquanto o pai curtia a vida e conhecia diferentes mulheres, Olivia era mãe, estudante, profissional. Não existia como ela mesma, mas sim em relação aos outros, vivia em função dos filhos. Não vemos ela tendo momentos só dela. Olivia está presa dentro do ciclo trabalho/estudo/família.

O pai, por sua vez, é livre, passa a imagem de estar sempre de bem com a vida, mora com um amigo músico. O momento em que  Junior é presenteado pelo pai com uma seleção das carreiras solo dos quatro Beatles é brilhante, marca o início da sintonia entre os dois.

Proposital ou acidentalmente, a reflexão final de Boyhood acaba ficando com a mãe, não com os filhos. Ela torna-se figura central a partir do momento em que assume a responsabilidade por todos que estão à sua volta. Esquece-se dela própria. Espero que a Academia lembre dela como atriz coadjuvante do ano.

Jogo da Imitação, de Morten Tyldum

Pouco festejado pela crítica, conta a história real de Alan Turing (Benedict Cumberbatch), o matemático responsável pela descoberta do código que contribuiu para o fim da II Guerra Mundial.A magnífica atuação de Benedict Cumberbatch aliada a essa história arrebatadora já bastaria para termos um excelente filme. Mas o diretor vai além.

Turing é um Sheldon Cooper (The Big Bang Theory) da vida real. Obstinado pela resolução do problema, ele ignora qualquer outra possibilidade de felicidade. Com a fiel colaboração de Joan (Keira Knightley), ele vive em função do trabalho, cria uma máquina para vencer a guerra a favor da Inglaterra.

A narrativa acerta por mostrar simultaneamente as duas lutas de Turing: a particular e a profissional, contra os nazistas. Ele desaba diante do próprio sucesso profissional, pois a vitória escancara a falência da sociedade burguesa da época. Um herói morto pelo preconceito.

Enquanto Selma exagera no caráter documental e A Teoria de Tudo detém-se somente no lado pessoal de Hawking, O Jogo da Imitação acerta em cheio no equilíbrio dos fatos. Grande filme. Emocionante.

Birdman, de Alejandro González Iñárritu

Birdman é, assim como O Lobo de Wall Street no Oscar anterior, um típico longa contemporâneo: contém humor, discussões ríspidas, sexo, cenas ágeis, trilha sonora com músicas conhecidas. Apesar disso, Iñárritu manteve o caráter experimental que marca sua carreira. Michael Keaton interpreta a sim próprio como o ator (Riggan Thomson) que quer provar sua capacidade para o público e para si mesmo. Ele é excêntrico, vive em busca de um injustificável sucesso.

Segundo o cineasta francês Jean-Luc Godard, cinema não é técnica, nem arte, mas um mistério. E é nesse ponto que Birdman transforma-se em uma obra exuberante. As perguntas ficam no ar, as razões pelas quais os personagens tomam determinadas atitudes são incompreensíveis. Iñarritu filma a imaginação do seu herói, confronta-o com seus maiores pesadelos. A narrativa não nos permite ter certezas.

Uma fábula sobre a eterna luta que o ser humano estabelece contra ele mesmo, uma batalha sem sentido, que só o leva à ilusão, ao fim, à escuridão. O truque de chamar um artista esquecido para esse tipo de papel já foi utilizado por Billy Wilder em Crepúsculo dos Deuses (Sunset Boulevard, 1950). O personagem de Keaton também lembra o palhaço falido genialmente interpretado por Chaplin em Monsieur Verdoux (1948). A disputa entre a vida do artista e a sua própria arte também foi encarada pela personagem de Greta Garbo, em O Grande Hotel (1932). "I just wnat to be alone", dizia ela. Keaton nem sabia o que queria. Parecia um gato louco correndo atrás do próprio rabo.

Viajamos com Edward Norton, Emma Stone e Naomi Watts, o brilhante elenco do filme do ano.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O autor que amava o amor

Em O Homem que Amava as Mulheres (L'homme qui aimait les femmes, 1977), François Truffaut justifica, mais uma vez, o seu alcunha de “cineasta do amor” (este blog já tratou do tema no lendário post sobre o filme Jules e Jim). Através do personagem (Charles Denner), um conquistador compulsivo, o diretor mostra a possibilidade de um homem se apaixonar por diversas mulheres, cada uma por um diferente motivo.

O protagonista descreve honestamente suas conquistadas, que não têm uma beleza nos padrões hollywoodianos, mas sim admiráveis peculiaridades, como irresistíveis "balançares de vestido"  e a forma firme de caminhar. O herói também “não é um Dom Juan”, mas o ar “circunspecto” dele garante seu charme.

Naturalmente, o herói da película trata muitas das mulheres como um simples objeto de prazer, o que não o torna um cafajeste ou um oportunista. Ele também se comporta como tal e é, quase sempre, sincero com elas - que simplesmente não o resistem.

Sem cair na tentação de julgar o protagonista, o que provavelmente aconteceria com um diretor comum, um indecifrável Truffaut retrata a vida desse homem que busca a felicidade da sua forma, sem medo das opiniões alheias. Um indivíduo pacato exteriormente (seu visual é completamente casual), mas intenso no seu íntimo.

Sob um único ponto de vista, com exceção do texto final, a película tem um tom autobiográfico, contada por um narrador cujas duas posições se fundem; o escritor do livro e o narrador do filme em si. As duas obras começam separadas e, com o decorrer dos fatos, assumem um único sentido.

Truffaut sempre buscou entender o amor, desde o tempo em que anarquizava ao lado dos colegas de Nouvelle Vague. Aqui, ele o faz, novamente, com criatividade e seu típico frescor. A aparente confusão fará todo o sentido para o espectador, ao final do longa. Ou ao final do livro?

No fim das contas, o amor retorna às cinzas, e os indivíduos são jogados à própria sorte, lambendo a poeira do chão antes habitado pelos espíritos livres que acreditavam em um sentimento que, de tão puro, é simplesmente inalcançável para a raça humana. Ilusão que seguirá deixando mortos na telona, nos palcos de teatro, no morro, no palácio, na televisão e no meio das ruas.